Senta que lá vem História!

Lá no coração verdejante da mata, o canto do uirapuru se abre como oração. “Musa Cabocla” — composta por Gilberto Gil e Waly Salomão, gravada por Gal Costa no álbum Minha Voz (1982) — não é só canção.

É encantaria em forma de som, um ritual de voz e violão que une o sagrado e o terrestre. Do sopro criativo de Gil, que tece melodias como quem planta árvores, à poesia alquímica de Waly (“flor da noite, estrela do mar”), a música emerge como um rio: não se escuta, se atravessa.

Gal Costa, então em transição do rock de Fantasia (1981) para uma linguagem mais orgânica, entrega aqui uma de suas performances mais luminosas. Sua voz não canta — invoca.

Os violões em afinação aberta, lembrando violas caipiras, e os atabaques discretos criam um balanço que evoca tanto a pajelança amazônica quanto a umbanda. É música que pinta a floresta com sons: dá para ouvir o cheiro de terra molhada, o farfalhar das folhas, o pulsar do Brasil ancestral que Gil e Waly sabiam decifrar.

O arranjo minimalista de Gil – quase um desenho a carvão – prova que o encanto está na simplicidade: um tambor, um dedilhar, um gemido que vira reza assinada por Gilberto Gil e Mazzola, com direção artística de Mazzola.

Waly Salomão, poeta erudito e xamã da palavra, imbui a letra de mitos que dialogam com Oswald de Andrade (“Minha língua é minha espada”) e a tradição oral. Quando Gal entoa “Musa Cabocla, flor da noite”, ela não descreve uma deusa — torna-se ela.

A canção é um portal para um Brasil que resiste na memória das águas, dos rios e das gentes.

Passados mais de 40 anos, “Musa Cabocla” segue viva porque é mais que música: é um ato de resistência poética.

Como diria Waly, “o poeta é um fazedor de auroras” — e aqui, ele, Gil e Gal nos presenteiam com um amanhecer de folhas, cantos e rios. Uma oferenda que ainda hoje sacia a sede de beleza e raiz.

SONZAÇO!
Renato Queiroz  é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música.

Musa Cabolca – YouTube