Domingo 31 de janeiro de 1993, Ralf está no palco, ele late. É a primeira vez que um cachorro abre um show de música em Salvador. Silencioso e de sapatos patins o artista entra em cena e brinca com Ralf.

Safado, o animal trepa na perna de Brown e faz a plateia se manifestar, delírio e perplexidade. Era a primeira vez que um cachorro abria um show de música no Brasil. Os Timbaleiros que se encontravam escondidos no fundo da coxia começaram a latir, Ralf enlouquece e dispara pelo palco, correndo em círculos , até sair. Num segundo movimento, Brown amassa um jornal e faz um som, dando a senha para entrada no palco do Candeal e seus personagens de carne e osso. Em cena, puro teatro num show de música dirigido pelo ator Ricardo Bitencourt.

No auge dessa abertura entra o primeiro mestre, carregado e aplaudido pelo público, o grande Fia Luna, seguido do outro mestre Pintado do Bogó, que entrou pintado. O paletó branco de linho de Pintado tinha extraviado meia hora antes dele entrar no palco e alguém em desespero perguntou : E Pintado vai como ? Num momento de iluminação Ricardo Bitencourt gritou : vamos pintar pintado e Ray Vianna criou ali, naquele momento a pintura da Timbalada.

Depois da entrada dos mestres, Brown pega o violão e sob os olhares atentos dos timbaleiros e canta falando de reis e rainhas para um “Pôr do Sol” com lotação esgotada. A temperatura do show vai subindo devagar, sem pressa, como uma caldeira que você vai jogando lenha aos poucos, para ir pegando pressão, tudo calculado, tendo consciência que num determinado momento vai atingir força máxima. Brown chama ao palco Nando Reis e Nando homenageia o amigo e o Candeal : “ parado para limpar para brisa” com o refrão suco de suvaco ecoando pela área verde.

A música flui, Nando continua no palco e outro convidado surge devagar, Leo Gandelman, que se junta a turma sem deixar a peteca cair, sem parar a música. A pulsação aumenta a cada instante e a plateia responde, mãos pra cima. Brown apresenta a Timbalada e Ninha pega o microfone e ataca de “Toque de Timbaleiro “ e “ Canto pra Lua” e a plateia vai a loucura. Brown jogando mais lenha na caldeira, chama Jorge Benjor que entra com sua guitarra tocando a “ Banda do Zé Pretinho “ acompanhado por Brown , a Timbalada, os mestres Pintado e Fia Luna, Nando Reis e Leo Gandelman, Benjor coloca todo mundo pra sair do chão. Parecia ser o “grand finale”, mas era apenas o primeiro tempo sem intervalo. O som rolava fácil e solto, música após música num ritmo frenético.

Brown veste a camisa do Bahia, número 10 as costas, regendo a festa. Jorge Benjor rende sua homenagem a Timbalada e chama Caetano que está na plateia. Caetano sobe de saia e novo delírio, com Jorge soltando “ Iris Brussel” e os dois cantando juntos acompanhado de todos. Caetano está feliz, brinca, pula, samba , se abraça com Brown e juntos dançam uma valsa. Jorge ataca de “ é de manhã”, homenageando o mano e Moreno. Caetano veste a camisa da Timbalada, flashes espoucam e quando ninguém esperava mais nada, Ari Gil chama ao palco Gilberto Gil, com a plateia parecendo não acreditar no que estava acontecendo.
Ninguém sai do palco, todo mundo tocando e cantando, os deuses da música baixaram e se mostram por inteiro, uma celebração. Jorge e Brown puxam o ritmo e chamam pelo sindico, a princípio tomei um susto, pensando que ia aparecer Tim Maia, mas era só uma homenagem. Caetano brinca com os Timbaleiros e todos parecem se divertir muito. A pulsação não para, com “Chove Chuva” Jorge passa a bola para Nando que sola e passa para Leo, que passa para Gil e Caetano, que há muitos anos não subiam juntos no palco. No grande final, todos se abaixam e veneram o grande Pintado do Bogô e na sequência Fia Luna, que do alto de seu atabaque gigante vai pro santo em “ Pobre Menina “ e encerra um dos maiores encontros da MPB já acontecidos na Bahia.

Tudo foi a 24 anos atrás, no dia 31 de janeiro de 1993, um domingo. Foi um show catarse, mais difícil de fazer. Quatro horas antes do horário marcado, o diretor Ricardo Bitencourt que já tinha me convencido a colocar um cachorro no palco, com o argumento de que latido de cachorro a noite no Candeal era uma marca, me disse que Ralf tinha estranhado o ambiente do hotel e estava nervoso, se não seria melhor leva-lo para uma clínica. Fiquei nervoso e disse que dali ninguém sairia mais e o que o show ia com cachorro ou sem cachorro.

Para completar o quadro Jorge Benjor atrasou e chegou no aeroporto as 17:45 e os portões abriam as 18 horas. Segurei os portões até 18:30, mas contrariando Brown abri para o público entrar, pois o tumulto começava a se instalar. As pessoas entraram e se depararam com a passagem de som de Benjor, quase caos. Na hora pensei com meus botões, ou vai ser um grande acontecimento ou estou ferrado. Depois de passada toda essa loucura, o paletó de Pintado sumiu, mas ai, pintou a pintura da Timbalada. No resto foi só despistar Carlinhos Brown, para entregar o uísque escondido aos mestres, que pediram dose dupla e Brown não gostava de bebida no camarim.