O cidadão analista. Por Marcelo Veras |
Sáb, 17 de Junho de 2017 14:34 |
Que a psicanálise se inscreve na cidade é um fato consumado. Hoje é possível saber com que ferramentas um psicanalista pode se servir ao dialogar com a psiquiatria, com o discurso jurídico ou mesmo, sentado nas calçadas, com os consumidores de crack. Quando Lacan propõe, em uma nota de pé de página dos Escritos, que a realidade seja tomada como uma fita de moebius, surge o avesso da questão. Como a cidade incide sobre o cidadão analista, aquele que supostamente deve saber que em toda formação social há um gozo insensato que escapa à doutrinação dos ideais. Minimamente, o cidadão analista deve se posicionar sem fazer uso da obviedade do discurso moral. O gozo e a violência da pulsão são (a)morais, ou seja, os ideais de uma cidade sem pichações, de uma política sem corrupção, de drogas apenas reguladas pelos lucros da indústria farmacêutica, fazem parte da utopia de uma polis higienizada por um esforço coletivo de sublimação sem restos. Como cidadão, por sinal também analista, sou um conversador. Conversar quer dizer também escutar. Com o tempo venho percebendo que há várias maneiras de estancar uma conversa. Uma delas é conduzir a conversa para denominadores comuns, daqueles que aniquilam qualquer diferença entre ácido e básico, esquerda e direita, Voltaire e Rousseau, e por aí vai. Ultimamente um dos maiores denominadores comuns é "Não tenho partido, tenho um país", ou "Queremos acabar com a corrupção". Fico pensando, há alguém que ouse dizer em público, "Quero corrupção" ou "Acabemos o país"? Isso apenas mostra como entre a enunciação e o recalcado há um mundo. Como muitos colegas, me bato diariamente contra o lacanês, aquele jargão que cala qualquer interlocução. Assim, quando tento conversar sobre política, percebo que nada é mais hipnótico do que o eixo a-a' das pequenas diferenças ( quem roubou mais, quem foi mais corruptor...). Ora, um programa político é muito mais do que a (má) qualidade dos políticos. Estão em jogo valores essenciais como a qualidade da educação, da saúde, dos direitos humanos, valores que deveriam ir além do banal comércio da corrupção generalizada. Prefiro pensar que um cidadão atravessado pela psicanálise saiba distanciar-se das miragens que apagam diferenças irreconciliáveis em um Brasil tão grande. Como pensar que meritocracia é apenas dar oportunidades iguais para populações desiguais? Como pensar que caminhamos no bom sentido e ao mesmo tempo vemos a escalada crescente de mortes de jovens, de pretos, de trans, de homos, de mulheres, und so weiter...? O cidadão analista pode ser aquele que sabe elevar o objeto dejeto de uma cidade à dignidade de um discurso. Fazer falar o que se quer calar, e não fazer coro ao que quer se identificar. Marcelo Vereas é Psicanalista |
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