Perdi minha família para a estupidez – Capítulo 03

– Eu não te conheço, mas não gosto do senhor.

– Por quê?

– Olha, eu só vim porque quero minha família unida novamente, mas não acredito nessas coisas de terapia. Eu só acredito naquilo que está escrito na Bíblia.

– Como a senhora se sente?

– Mal, muito mal. A minha família sempre foi unida, agora está despedaçada.

– Conte comigo para unir sua família novamente.

– Só estou aqui por causa disso.

– Fale um pouco sobre sua vida.

– Meu pai era compositor, sempre frequentei rodas de samba na infância, sabe? Aquele enredo da Beija-flor… “A felicidade vai me abraçar, não há amanhã que não vá chegar”? É dele. Epitácio Figueiras.

– E como Jesus entrou na sua vida?

– Meus pais eram da umbanda. Já estive em pecado na vida, frequentei muita gira do Preto Velho, de cigana. Entrei pra igreja depois de viúva, me senti abandonada pela vida.

– Seu marido era da igreja?

– Não. Casei com um militar. Heleno era tenente. Ele teve câncer. Fiquei viúva depois de três anos de casamento, nem deu tempo de ter um filho. Fiquei muito triste, minha vizinha me levou na Igreja Losangular, e de lá nunca mais saí. Se não fosse o pastor Reginaldo, minha vida teria acabado.

– Ele te ajudou?

– Sim, me deu todo apoio. A pensão demorou quase seis meses pra sair, fiquei sem dinheiro pra nada, a igreja me socorreu com alimentação, e pastor Reginaldo pagou as minhas despesas nesse período.

– Ele te pediu algo em troca?

– Nada, só o que está na Bíblia, que é o dízimo. Assim que minha pensão saiu, paguei tudo. Aí o pastor me pediu ajuda e não pude negar.

– Que ajuda?

– Pediu que deixasse o cartão da pensão com ele pra ajudar outras pessoas que precisavam de ajuda.

– Mas não era só o dízimo?

– É só o que você precisa saber.

– Tudo que conversamos aqui é sigiloso e fica no divã.

– Reginaldo é um vencedor. Começou nas drogas, foi avião e virou líder do tráfico. Puxou oito anos de cadeia em Bangu, mas lá conheceu Jesus e se converteu. Quando saiu da prisão, criou a Igreja Losangular, que adora a mulher enquanto caminho para encontrar Jesus.

– Como assim?

– É muito simples. Jesus é filho de Maria, então todo homem que segue Jesus deve procurar uma mulher bondosa e misericordiosa. Por isso que o símbolo da igreja é um losango.

– Ainda não entendi.

– Pois faça um losango juntando o indicador e o polegar de cada mão.

– Assim?

– Isso. Está vendo o losango? É o ventre de Maria. A Igreja Losangular tem como princípio a busca de Jesus através do ventre de Maria.

– Nunca tinha visto pensado nessa possibilidade.

– Numa noite, com três meses de viúva, pastor Reginaldo me explicou o Ritual de Regressão ao Útero, que é o princípio da doutrina da Igreja Losangular.

– Ele faz hipnose?

– Não. Ele disse que precisava regressar ao útero de mulheres puras como Maria e havia me escolhido.

– Então quer dizer que ele ficou com seu cartão da pensão e ainda transou com a senhora? Nunca desconfiou de nada?

– Olha, nunca contei isso pra ninguém. Sempre achei que era o correto e tem mais coisas.

– Continue.

– Ele é casado, com o passar do tempo disse que acabei me tornando amante e não desejava essa situação, mas ele nunca terminou com a esposa. Luíza é um anjo e sempre me tratou bem na igreja.

– Tenho certeza que esse cara fez mais. Comprou carro usando o nome da senhora?

– Sim.

– Fez empréstimo em seu nome?

– Vários. Estou com nome sujo até hoje.

– E depois que a senhora não tinha mais nada a oferecer, terminou.

– Exatamente. Como o senhor sabe de tudo isso?

– É meu trabalho. De charlatanismo entendo muito bem.

– Antes achava que era o correto, mas com o tempo passei a me sentir a maior pecadora do mundo. Reginaldo não fala mais comigo na igreja e finge que nada aconteceu. Vejo pecado em tudo e cada vez me sinto mais culpada.

– Por isso a senhora fez aquela pregação no último Natal da família?

– Sim! Não aguento ver meus sobrinhos em pecado.

– Mas a senhora não se sente em pecado também?

– Claro, mas o correto é não pecar.

– Dona Elvira, não se cobre tanto assim. A senhora foi vítima de um estelionatário que te enganou em um momento delicado da vida. Estava carente. Não se culpe nem culpe as escolhas das pessoas. Agora que tem consciência, faça diferente.

– Você tem razão. Amo tanto João Ternura e Mariene! Sinto falta deles na minha casa. João amava ler, eu comprava livros só pra ele me visitar. As coisas foram acontecendo, a vida foi me atropelando, a gente se afastou.

– Mas quem sabe vocês podem se reconciliar no próximo Natal…

– É o que mais desejo. Infelizmente não teremos mais a presença de meu sobrinho Gabriel.

– Como ele morreu?

– Por causa da pandemia. Pegou covid depois de participar de uma motociata. E olha que ele fez o tratamento precoce direitinho.

– A senhora também fez?

– Sim, mas eu também fiquei em casa. Sou idosa. Na dúvida, fiz as duas coisas.

Bruno D’Almeida escreve textos para a coluna Fabuloso Cotidiano, as histórias de ficção de um mundo de verdade, no Mídia4P em parceria com a Carta Capital. Siga Bruno D’Almeida em seu canal no YouTube e no Instagram @dalmeidabruno. Para ler outros textos do autor,

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