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Eu mordi o rabo do Diabo e gritei !! por Lula Afonso
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Sex, 10 de Maio de 2013 04:22

Lula_Afonso2No surpreendente livro Shantaram, o australiano Gregory David Roberts relata uma saga autobiográfica que se diria fantasiosa e excessiva, não fossem os registros colhidos sobre a vida do autor, especialmente os anos em que ele morou clandestinamente em Bombaim, hoje Mumbai, megalópole indiana com mais de 20 milhões de habitantes (mais da metade mora em favelas ou vive nas ruas).

Roberts era, então, alvo graúdo da Interpol após ter conseguido escapar, pela porta da frente, da prisão onde cumpria 20 anos por tráfico e assalto a mão armada, para sustentar o vício em heroína.

Shantaram (Editora Intrínseca: Rio, 2011) já vendeu mais de dois milhões de exemplares em 40 países, e chama a atenção em qualquer prateleira: é um “tijolo” cor de açafrão, com 910 páginas (em letras miúdas) e mais de um quilo de peso. Mas os que encaram os primeiros parágrafos costumam ser possuídos pelo frenesi de devorar as delirantes aventuras de Roberts na Índia, Paquistão e Afeganistão. E não poucos lamentam que a leitura acabe tão rápido e não exista mais livro depois do ponto final...

A “pegada” nada leve da narrativa mereceu menções do The New York Times, Wall Street Journal, Sunday Times, Time Out. As resenhas desfilam as peripécias do fugitivo na fervilhante Bombaim do início dos anos 1980: escondido numa favela, ele transformou sua tenda esfarrapada em posto médico; em busca de remédios, visitou o líder dos leprosos no gueto e dele recebeu medicamentos contrabandeados para cuidar dos seus doentes; entrou para o mundo do crime organizado, trabalhou com lavagem de dinheiro, foi falsificador e soldado da máfia. Viajou pelo interior do país e aprendeu hindi e marata; fez amizades esquisitas, apaixonou-se, foi traído e barbaramente torturado em uma cadeia indiana. Resgatado pela máfia, voltou à ativa e atuou em filmes de Bollywood. Por lealdade ao chefe, lutou contra os russos ao lado dos guerrilheiros mujahedin, nas montanhas remotas do Afeganistão... Trajetória de causar inveja a roteirista imaginoso.

Pat Conroy, autor de O Príncipe das Marés, afirma que “Gregory David Roberts faz por Bombaim o que Lawrence Durrel fez por Alexandria, o que Melville fez pelos mares do Sul e o que Thoreau fez pelo lago de Walden. Ele transforma a cidade em um personagem eterno da literatura mundial.

Entre os libelos notórios de consumidores de drogas pesadas (destaque para a autobiografia “Vidas”, do Stone Keith Richards, para o "Almoço nu" de William Burroughs e para os enlevos opiáceos de Jean Cocteau), nada há que se compare à descrição crua e pungente de Roberts sobre a descida ao inferno da heroína – e também a sua contraparte dilacerante, o caminho de volta, a travessia descalça sobre as pontes de pregos das crises de abstinência. Vale replicar partes dessa agonia, trechos confessionais de primor literário:

“E mais uma vez disparei a bala de prata em meu braço e despenquei na jangada à deriva. (...) A heroína é um tanque de privação sensorial para a alma. Ao flutuar no mar morto da droga, não há sensação de dor, arrependimento ou vergonha, nenhum sentimento de culpa ou sofrimento, nenhuma depressão e nenhum desejo. A imobilidade e a paz insensíveis dispersam o medo e o sofrimento”.

“Essa absolvição química tem um preço, como tudo mais no universo, que é a luz. A primeira luz que os viciados perdem é a dos olhos. O olhar de um drogado é tão desprovido de luz quanto o de uma estátua grega, quanto chumbo batido ou um buraco de bala nas costas de um morto. Em seguida, apaga-se a luz do desejo. Os viciados matam o desejo com a mesma arma que aniquilam a esperança, o sonho e a honra. E, quando todas a outras luzes da vida desaparecem, a última que se perde é a do amor”.

O agônico processo de volta segue, descrito·em estilo sublime: “Olhei no espelho e vi meus olhos com pupilas tão dilatadas que a íris parecia completamente negra. Quando a luz volta, quando a heroína acaba e tem início a síndrome de abstinência, ela se precipita pelos canais negros dos olhos. É assim. A síndrome de abstinência é a vida em carne viva”.

 

O convívio íntimo com a droga é um pequenino retalho no mosaico da epifania de Gregory Roberts, na sua aproximação minimalista às culturas exóticas e milenares do oriente. Sua imersão toca nas fímbrias do sofrimento e da dor, que a religiosidade oriental tenta resolver aqui mesmo na terra. Ele desceu em câmera lenta pelo poço sem fundo da crueldade e conheceu os infernos do submundo do crime. Visitou antros de venda de crianças escravas, sobreviveu a estouros de ratazanas pelas vielas estreitas e a ataques de cães famintos nas bordas da favela. Era considerado louco e sábio pelos chefões da máfia, que apreciavam o seu desprendimento, lealdade e ligação sincera a valores tradicionais da Índia.

Impressiona a descrição da seita dos “Babas de Pé”, místicos dedicados ao voto de nunca mais sentarem ou deitarem, permanecendo de pé dia e noite em seus trabalhos, orações, refeições e necessidades. "Quando o sono pesava, prendiam-se a arreios que mantinham o peso sobre suas pernas. Nos primeiros cinco a dez anos os músculos engrossavam e as pernas inchavam ao ponto de não ter mais um formato identificável". Nos anos seguintes o processo se invertia e as pernas afinavam ao ponto de sobrarem apenas ossos cobertos por fina camada de pele e as marcas das veias ressecadas.

Trata-se, enfim, de um romance multifacetado, vibrante e povoado por tipos humanos tocantes e convincentes, com a força de personagens idealizados por Balzac, Stendhal e clássicos da literatura russa do século XIX. Entre seus amigos, Roberts eterniza o sorridente guia turístico Prabak e o assassino profissional iraniano Abdullah, sobre quem relata: "tornamo-nos amigos de maneira rápida, sem questionamentos, adotada pelos criminosos, pelos soldados e por outros sobreviventes de desastres". Toma como pai espiritual o afegão Khardebhai, líder da máfia, misto de contraventor e filósofo.

Outro personagem singular é o boêmio Didier, expert em filosofia de alcova. Em conversação no onipresente bar Leopold, revela seus segredos: “Sou francês, homossexual, judeu e criminoso, mais ou menos nessa ordem. Bombaim é a única cidade que encontrei que me permite ser essas quatro coisas ao mesmo tempo”.

"Todos os dias da minha vida eram de risco”, diz o autor em algum lugar do livro ­– e isso faz sentido, assim como faz sentido a síntese, a seguir, do ímpeto transgressivo da narrativa: “Em três horas, cometi trinta crimes ou mais. E sorri quando as pessoas sorriram para mim. Éramos goondas, chefões do crime, e quase todo mundo sabia disso. Nossas roupas eram novas, caras e seguiam a última moda. Estávamos todos em boa forma. Éramos autoconfiantes. Todos perigosos e armados”.

Gregory David Roberts escreveu Shantaram três vezes, porque guardas da prisão destruíram as duas primeiras versões. Anos mais tarde foi recapturado, na Alemanha, e cumpriu na Austrália o restante da pena. Mora atualmente em Bombaim, cidade que elegeu para chamar de sua, e vive do que escreve

Artigo publicado originalmente em www.wagau.blogspot.com.br

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