A cidade do Salvador e o desmatamento. Por Eurico de Jesus
Vasculhando na minha memória de garoto soteropolitano, contaminada de anacronismo romântico, lembro que em todos os vales de Salvador, hoje transformados em grandes avenidas, havia uma fonte, passava um rio, tinha um bosque, uma horta, um campo de futebol.
Nossas formosas colinas eram povoadas de vegetação frondosa que bailava ao sabor dos ventos, agitando as cabeleiras verdes das centenárias árvores que conviviam com todos nós desde tempos pretéritos.
Mangueiras, jaqueiras, tamarindeiros, mangabeiras, jabuticabeiras, pitombeiras, cajueiros, pitangueiras, coqueiros, dendezeiros, ouricurizeiros, cajazeiras, oitizeiros (quase ninguém sabe o que é isso), jenipapeiros, sapotizeiros, bananeiras, mamoeiros, abacateiros, entre muitas outras plantas e arbustos que albergavam uma riquíssima fauna.
Nossas casas, com as portas e janelas escancaradas, eram invadidas e acariciadas pela agradável brisa que meciam as redes na varanda como canções de ninar.
Despertávamos com a sinfonia dos pássaros e finalizávamos o dia com o chirriar das cigarras que pareciam elétricas.
As noites eram misteriosos territórios habitados por sapos, corujas e pirilampos.
As edificações que existiam, com exceção do centro histórico e das áreas onde funcionavam o comércio na cidade baixa, eram chácaras e/ou casas com jardim e quintal, tanto ricos como pobres, poucas edificações ultrapassavam o gabarito de cinco ou seis andares.
O esgoto que passa na Baixa dos Sapateiros, soterrado e canalizado em baixo da avenida, se chama ou se chamava Rio das Tripas, que começa na Barroquinha nos fundos do Mosteiro de São Bento, unindo-se a altura da Rótula do Abacaxi com o Rio Camurujipe para posteriormente desaguar no mar a altura do Costa Azul no Jardim dos Namorados.
Por toda extensão da Avenida Centenário passa um rio, hoje esgoto, que começa no Dique do Tororó, precisamente na Estação da Lapa, justo na base do Convento da Lapa e termina no antigo Barravento onde atualmente está localizado o Cristo da Barra.
Os vales do Bonocô, Ogunjá, Vasco da Gama, Iguatemi, Itaigara e um largo etc…também.
As antigas fontes e rios continuam existindo, agora transformados em esgotos, suas lágrimas só estão reivindicando o que sempre lhes pertenceu.
Pouca coisa se salvou do exponencial e descontrolado crescimento demográfico, da massacre do machado e da serra elétrica a serviço da barbárie especulativa que começou nos inícios dos anos sessenta e continua até os momentos atuais.
Os que milagrosamente ainda resistem são: Parque da Cidade no Itaigara, a ex-mansão do banqueiro Clemente Mariani na ladeira da Barra, o Parque de Pituaçú, o Alto de Ondina e um bosque ao lado esquerdo no inicio da Avenida Paralela indo em direção ao Aeroporto 2 de Julho.
Os fenômenos meteorológicos que apavoram Salvador, são respostas convulsivas de um planeta agredido, não existem maiores explicações.
O cenário atual é mais ou menos assim, segundo os versos do saudoso Chico Science:
” E a lama come mocambo
e no mocambo tem molambo
e o molambo já voou
caiu lá no calçamento
veio o sol do meio-dia
o carro passou por cima
e o molambo ficou lá! “…
Eurico de Jesus é Bailarino, poeta, pintor e capoeirista.