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A Sustança de Gilberto Gil. Por Renato Queiróz

7 - 9 minutos de leituraModo Leitura

No ventre musical da Bahia nasceu Gilberto Gil, Salvador, 26 de junho de 1942. Filho da luz tropical e do batuque profundo, ele cresceu embalado pelos cânticos do mundo e pelas vozes do povo. Não se limitou a ser apenas cantor ou compositor – Gil é verbo em estado de invenção.

Senta que lá vem História!

Na Tropicália, foi orvalho e trovão: transgressor de moldes, fundiu o ancestral e o elétrico, o sagrado e o profano. Sua música não se ouve, se atravessa – como correnteza que carrega memórias e sementes do porvir.

Foi também voz política: ministro da cultura com alma de artista, defensor do acesso, da liberdade criativa e do direito de ser plural. E mesmo nas salas do poder, o violão lhe acompanhava como bússola moral.

Gil é ponte viva entre o samba e o software, entre o terreiro e os festivais europeus. Sua obra, ora lamento, ora carnaval, é sopro de um Brasil que insiste em florescer.

Como dizer… algumas pessoas não nascem: se manifestam. Gil é desses – não é apenas presença, é permanência.

Gilberto Gil fez 83 anos tendo o mérito de ser reconhecido como um dos maiores talentos da música e da cultura brasileira. Além disso, Gil foi profundamente influenciado por uma variedade de estilos musicais.

Sua versatilidade, olhar apurado e ouvidos sensíveis para diferentes manifestações musicais tiveram um impacto direto em sua discografia, que abrange desde o baião até o samba, do reggae ao rock britânico e à bossa nova. Nomes como Bob Marley, The Beatles, Dorival Caymmi, Noel Rosa e Luiz Gonzaga, e outros, sempre são lembrados pelo Mestre Gil.

Essa capacidade de agregar influenciou diretamente seu trabalho em prol da cultura brasileira, além de lhe render reconhecimento pela Academia Brasileira de Letras.

O primeiro encantamento musical de Gilberto Gil veio por meio de Luiz Gonzaga, o ícone do baião. A lembrança de vê-lo em um show na Praça da Sé, em Salvador, deixou uma marca profunda no coração do menino, considerando Gonzaga uma das principais razões pelas quais se tornou músico. Ganhou um acordeon e este foi o seu primeiro instrumento.

Gil declara que antes da influência de João Gilberto, sua batida e pegada no violão vieram do gemido e do molho inovador que o Rei do Baião imprimiu em um jeito único de tocar o acordeon, com suas traquinagens e levadas no fole.

O baião é um gênero de música e dança popular derivado de um tipo de lundu, denominado “baiano”, de cujo nome é corruptela. Inspirou-se nas frases musicais de introdução das emboladas, cocos, repentes, cirandas e desafios.

No sertão onde a terra racha e o céu se dobra em calor e prece, nasceu Luiz Gonzaga, em Exu, Pernambuco, no dia 13 de dezembro de 1912. Não foi apenas um homem – foi vento que arrastou o som do nordeste até o coração do Brasil.

Com sua sanfona colada ao peito e um chapéu de couro como coroa, reinventou a paisagem sonora do país. Fez do baião, do xote, do xaxado e do forró pé de serra não só ritmos, mas registros vivos de um povo inteiro. Sua música carregava cheiro de terra molhada e saudade de mãe, riso de festa e lágrima contida.

Nas décadas de 40 e 50, virou ídolo pop de um Brasil em transformação. Foi rei sem trono, mas com reinado eterno – sua voz atravessava rádios, feiras e sertões como prece em alto-falante. Sob os dedos, a sanfona não chorava: contava causos, inventava esperanças.

Há artistas que interpretam o tempo; outros o eternizam no som. Gonzaga não apenas tocava, ele traduzia com cada acorde, cada estrofe, cada passo o cancioneiro brasileiro sob o luar.

O baião viveu seu primeiro auge no final dos anos 50, e sendo esquecido na década de 60, com o advento da jovem guarda e da bossa nova. A sua popularidade voltou a crescer nos anos 70, especialmente entre os baianos da Tropicália, depois com a Turma do Ceará e com a leva de outros nordestinos.

O fato é que, sempre presente na cultura nordestina, evidentemente, o baião influenciou o trabalho de diversos outros artistas, incluindo a história musical de Gilberto Gil e até mesmo Raul Seixas com seu rock’n roll, que ele chamou de “Baioque”.

Em 1970, Caetano Veloso gravou “Asa Branca” com um novo arranjo, evidenciando as referências a Luiz Gonzaga, já presentes no início da carreira de Gilberto Gil. “Asa Branca” ou “Expresso 2222” (de Gil), que dialogam com o baião e a identidade nordestina.

“De Onde Vem o Baião” é uma pérola do sertão ao asfalto do mundo. Ah, mas o baião, sinhô, ele nasceu não sei se do couro da zabumba ou do gemido do triângulo, da zoeira da sanfona ou se foi do pé batendo no chão de terra, firme, como quem diz: “Aqui eu fico”.

E Luiz Gonzaga, o Lua, com seu Humberto Teixeira, pegaram esse bicho danado do ritmo, amansaram em compasso, botaram no papel e no disco, lá nos anos de 1940. Foi um estrondo que atravessou serras, varreu desertos, e o Brasil inteiro dançado. Baião, baião, quem não se balançou?

Mas o tempo roda, o vento vira, e eis que vem Gilberto Gil, esses meninos novos de cabeça cheia de estrelas e pés ainda no chão da Bahia. Pegou o baião do velho Lua, deu um jeito de embalar ele nas ondas, nos fios da guitarra elétrica, mas sem nunca perder o cheiro de fogueira, de feira-livre, de cantiga de roda.

Gal Costa, voz de anjo e coração de cantadeira, foi quem primeiro lançou essa nova fala do baião, no disco Água Viva (1978), feito sob o olhar de Perinho Albuquerque – homem que sabe o peso do som e o som do silêncio.

E essa herança segue viva: Gal Costa, em entrevista ao Jornal do Brasil (1978), chamou o baião de ‘alma musical do Nordeste que o mundo abraçou’. Já BaianaSystem, em 2021, declarou ao Estadão: ‘Gonzaga e Gil nos ensinaram que tradição é rede pra pescar o novo’. O baião, assim, não é só ritmo – é uma corrente que liga sertão e cidade, passado e futuro, sempre em reinventação.

E assim o baião vive: um pé no passado, outro no futuro, o corpo balançando no presente. Porque ele não morre, não, sinhô. Ele se reinventa, como o rio que seca e volta a correr depois da chuva. É farinha do mesmo saco, mas o bolo muda de forma. O que não muda é o sabor – sempre nordeste, sempre Brasil, sempre o mundo.

“Debaixo do barro do chão da pista onde se dança,
Suspira uma sustança sustentada por um sopro divino,
Que sobe pelos pés da gente e de repente se lança
Pela sanfona afora até o coração do menino.
De onde é que vem o baião?
Vem debaixo do barro do chão.”

Naquela idade Gil, ainda menino, no show na Praça de Sé, em Salvador, é um desses momentos de uma magnitude inimaginável, e quanto ela foi promissora!

Em 1985, Gil dividiu o palco com o próprio Gonzaga, acompanhado por Dominguinhos, no show “Gil: 20 Anos-Luz”.

Em 1991, Gilberto Gil mergulhou nas raízes e nas asas do baião com o álbum “Parabolicamará” — produzido por Liminha (um dos arquitetos do som da Tropicália nos anos 70). Gravado em Salvador e no Rio, o disco reinventou clássicos de Luiz Gonzaga, como ‘Asa Branca’ e ‘Baião da Garoa’, misturando sanfona, guitarras distorcidas e samples eletrônicos.

Além disso, em 2001, lançou o DVD “São João Vivo”, com sucessos do músico pernambucano.

Em entrevista ao Jornal da Bahia na época, Gil explicou: ‘Quis trazer o baião para o universo digital, mas sem perder o cheiro de terra. É como se Gonzaga estivesse num satélite, olhando o sertão de cima. A faixa-título, ‘Parabolicamará’, tornou-se um manifesto dessa fusão: Antena parabólica, rádio, telenovela e um chão de estrelas, sintetiza o Brasil que Gil sempre cantou – ancestral e futurista, como o próprio baião.

O baião continua exercendo influência no trabalho de músicos e artistas de todo o Brasil até hoje.

A última turnê de Gil, agora em 2025, “Tempo Rei” celebra a força transformadora do tempo, trazendo esperança e renovação. Ela nos convida a refletir sobre a passagem do Tempo, em suas metáforas e poética, a acreditar na vida, mesmo diante das adversidades. A melodia e a poesia de Gil nos envolvem como um abraço acolhedor, lembrando-nos de que o tempo é nosso aliado na jornada.

No dia, do show aqui em Salvador, na estreia, eu estava lá… era um redemoinho de expectativa e experiência boa. Desde agosto de 2024, esperando, o coração dançando samba, rock, baião… sonhando em cordel. Parecia tão distante, e o dia chegou.

Gilberto Gil surgiu no horizonte. Gilberto Gil no horizonte e foi certeza de estrela que cruza o céu: a vinda faz brilho, e a ida não some da memória. Um dia que a gente vai chamar de magia e encantamento e já se sabe, Gil não falta com o encantamento e com a sustança.

Gilberto Gil não precisa de monumentos de palavras – precisa de quem o escute com ouvidos atentos.

Gilberto Gil não precisa de mitologia. Ele já é um arquivo vivo da música brasileira, um homem que transformou a música em passaporte para o futuro.

Aqui, “Baião” (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) e “De Onde Vem o Baião” (Gilberto Gil) do DVD Fé na Festa Ao Vivo (2010).

Gilberto Gil é SONZAÇO!

Renato Queiroz  é professor, compositor, poeta e um apaixonado pela história da música.

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8 comentários

  • Ana Aurea disse:

    Excelente texto! Gil é um nordestino raiz a frente de seu tempo! Viva João, Gil, São João

  • Ana Carla F.C.Rios disse:

    Renato, parabens por tradyzir com tanta arte ecternura e historia deste homem arte – Gilberto Gil.

  • América Branco disse:

    Essa pessoa,foi a coisa mais maravilhosa que aconteceu na minha vida ,sempre fui meio que encantada com ele,sou do norte,por isso a música dele me tocava bastante,mas tinha o lado do poeta que é inovador,temas como”se eu quiser falar com Deus”Refazenda” e tantas outras,passaram a dar significado ao meu viver.

  • Fátima Falcão disse:

    Renato que texto! Arrasou, brocou, encantou!

  • Sandra Selma Araujo Rodrigues disse:

    Parabéns!!! Renato vc sempre será divino e FANTÁSTICO.

  • Sandra Selma Araujo Rodrigues disse:

    Ameiiiiiiiii!!!!!

  • José Zumaêta disse:

    Texto espetacular Renato! Realmente Gilberto Gil se manifesta,em cada música, cultura interpretação, posição política e ideológica. Você pode encontrar Gil quando er vereador em Salvador fazendo uma exposição de ideias na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA ( eu estava lá) e Gil discursando na sede da ONU e fazendo/convidando o então Secretário Geral Kofi Annan a tocar junto com ele. Gil é criativo, sonoro, cosmopolita sem perder suas raízes nunca nem as baianas nem a as ancestrais africanas. Sobre Gonzagão e Raul Seixas lembro de Raul mostrando com o violão que Luiz Gonzaga e o Forró era a mesma ” batida” do rock de Elvis Presley. Texto maravilhoso e duas músicas excelentes de se ouvir e dançar.

  • Dene Calundu disse:

    Um prazer imenso ler o texte de Renato Queiroz, “A sustança…” e ver nosso caro Gil cantando e dançando o baião de nossa terra insubmissa e indomável.
    Dene Calundu

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