Então é Natal! E o que fizeram às mulheres negras? por Carla Akotirene
Que o movimento de mulheres negras se constitui no mais exitoso e atuante do planeta Sueli Carneiro nos ensina, e este ano de 2013 foi marcado pela conquista de reivindicações históricas, a citar a Emenda Constitucional nº 72, a qual consagrou dignidade e direitos no espaço doméstico às milhares de Laudelinas de Campos e Creuzas Oliveiras.
Assisti à habilidade das organizações das mulheres negras para garantir as condições de governança e governabilidade da Secretaria Especial de Promoção de Políticas para a Igualdade Racial. Vi Ana Claudia Pacheco lançar seu livro Mulher Negra: afetividade e solidão e o saber de Valdeci Nascimento alcançar a cátedra da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. “Testemunhei” o Bloco Afro Ilê Aiyê, uma organização antirracista, ser condenado judicialmente a reconhecer a existência do machismo em seu interior e vir a público retratar-se pelas agressões ocasionadas à jovem mulher negra Deise Sacramento.
Em direção semelhante, acirramos o enfrentamento contra o genocídio da juventude negra, alçando à institucionalidade ações para manter a juventude viva; o combate contra a leitura midiática de coisificação da nossa sexualidade e de que somos preguiçosas intelectuais; o enfrentamento ao epistemicídio e à nossa amnésia literária a respeito de Carolina de Jesus. Casamos identidades lésbicas negras com o combate às violações perpetradas pelo Sr. Marco Feliciano. Sem esterilizações, mantivemos oposição ao discurso religioso do Estado referente à negação dos direitos sexuais reprodutivos e da recusa à garantia legal do aborto seguro e digno.
No Pronto atendimento de Urgência e Emergência vi muitas mulheres negras, seguradas pela ancestralidade que as carrega, notificarem seus algozes, romperem com o silêncio das violências, revelando aí o aumento no índice das denúncias e não o acréscimo das agressões por elas sofridas.
Se por um lado denunciamos as violências físicas, deixamos de fazê-las quando tais violações afetam o psíquico, o afetivo, o sonho individual e os projetos coletivos. O que observei em 2013 é que o movimento legitimado ao enfrentamento de tais opressões contra as mulheres negras é o mesmo que precisa combatê-las no coração de suas organizações. É a relação de amor incondicional com nossos parceiros que precisamos romper.
Da mesma forma que encorajamos as mulheres negras, sobretudo as oprimidas e subalternizadas nas classes, a conhecerem os instrumentos protetivos, a denunciarem, a romperem com o ciclo de dependência afetiva, igualmente no cerne do movimento negro, do nordeste ao sul, precisamos criar condições emocionais para a ruptura desse nó afetivo com homens que anulam politicamente, destituem falas, ocasionam prejuízos emocionais à saúde das mulheres negras, e reiteram a asfixia política como condicionante ao extermínio do povo negro.
Em sintonia com bell hooks, considero que a prática das mulheres negras de se reprimir os sentimentos como forma de sobrevivência tornou-se a principal estratégia política de convivência pretensamente harmoniosa nas organizações negras. Lembremos “que precisamos aprender a responder as nossas necessidades emocionais, e isso pode significar um novo aprendizado, pois fomos condicionadas a achar que essas necessidades não são importantes”, (hooks).
Não se diferencia muito a mulher que, após apanhar, prepara comida gostosa para seu companheiro por achar-se culpada pelas agressões sofridas e aquela militante negra que ao ser assediada intelectualmente e politicamente por ativistas, atenua a iniquidade ao atribuir a conduta violenta dos mesmos ao ancestral impetuoso e agressivo que os carrega, ou pior, a uma contundência raivosa espontânea para não dizer sincera. Assim como Luiza Bairros já em 2008, em a Mulher negra e feminismo, eu acredito que nós mulheres negras “precisamos nos unir em separado”.
Com efeito, se politicamente entendemos que a briga de marido e mulher merece repercussão pública, uma vez que o pessoal é político, compreendamos igualmente que nossa defesa a favor de qualquer mulher negra militante independe de partido ou organização mista, pois numa acepção mulherista vivemos enquanto comunidade de mulheres negras, e não é ‘secretaria ou institucionalidade a nos instruir a andarmos juntas’.
A todo o tempo e todos os dias denunciamos a violência letal contra os homens negros. Em troca, o que recebemos em relação ao nosso encarceramento – não raro em decorrência de uma relação autofágica provocada por filhos, maridos e companheiros – ao nosso adoecimento mental, à nossa esterilização compulsória, nosso solitário aborto clandestino, à nossa angústia e a nossa lealdade a eles? É o silêncio!
Muitas mulheres ainda serão manobradas em contextos sexo-afetivos e usurpados seus capitais intelectual e político para conferir o status de organização nacional a entidade promovida e dirigida por e para nossos homens.
Muitas mulheres negras mais, já leiloadas em acordos políticos, envidarão esforços para manterem uma relação cínica com seus homens, cuja confiança se deposita unicamente nos cargos e não na relação com as mulheres.
Tantas outras serão dissuadidas a não denunciarem seus companheiros, a manterem a relação a flores e copo d’água para acalmar a legitimidade e validade de suas emoções. Várias estarão desautorizadas a abordar determinadas temáticas porque não foram referenciados os conteúdos epistêmicos, antes, por dirigentes negros.
Sabemos do olhar machista aos contributos intelectuais, políticos e organizativos sobre as mulheres desde a essência do movimento negro, mas somos igualmente conhecedoras das alianças geracionais destas mesmas mulheres com os homens, ícones ou não do movimento, na infantilização e descredenciamento da geração posterior às décadas de 70-80, uma vez que o adultismo é expediente tão promissor quanto o machismo nas organizações mistas. E que não se confunda faixa etária com geração!
Se os nossos passos vêm de longe, e eu sei que eles vêm, precisamos reivindicar o direito de o lixo falar, assim como Lélia González. Precisamos, numa terapia comunitária de confrontação do nosso eu e de nossos embaraços, acolhermos emoções mais saudáveis à ética do cuidado entre as mais novas e as mais velhas.
O racismo mais o machismo juntos têm nos deixado cabisbaixas, inseguras com o espaço público, com a pressão arterial alta. Têm tirado dos nossos braços a força para os abraços, têm nos roubado noites de sonos, afetado nosso estímulo para alianças e solidariedades das/com mulheres negras.
Estou escrevendo sobre isso porque hoje, aos 33 anos, sei que a minha reconciliação com minha mãe e tias somente foi possível a partir deste aprendizado no movimento negro. Ouvindo com atenção as mulheres negras, curando-me de mágoas e repensando politicamente minhas relações afetivas com as demais mulheres. Lembro-me que desde os meus 13 anos, passando pelos 15, minhas tias, devido às alianças com seus seduzidos companheiros pela minha adolescência negra, me isolavam do convívio mútuo, não falavam comigo, ainda que a oralidade e a roda de diálogos sejam expressões singulares africanas, inclusive na diáspora, como terapia comunitária e reconstrução da espiritualidade e das emoções.
Emocionalmente me machucaram mais com suas práticas de isolamento que os seus companheiros com violências de natureza física. E foram o movimento e a as movimentações das mulheres negras, há uma década, a me ensinar a cuidar, a ser empática e a entender os conteúdos do marcador de gênero nas sociabilidades das mulheres negras.
É pertinente lembrar que na paisagem das nossas existências há beleza e força porque da pedreira há queda de água por todos os lados e não para nossos suicídios. Não cabendo, portanto, exposição cotidiana ao estresse e a níveis descompensados de amargor e tensão.
O afeto yalodè pode curar emoções adoecidas. Resvalar sob a forma de poder feminino, proteger nossa comum unidade, sendo a nossa pedra da sorte. A recuperação das práticas amorosas entre as mulheres negras pode curar toda humilhação do racismo, e seguramente dosar sob a forma de afeto o vigor emocional.
Atualizando a feminista negra Patrícia Hill Collins, ainda tenho a impressão de serem dos homens a movimentação política advinda do movimento negro, tal qual as brancas nos confundem com a branquidade das organizações feministas.
Compreendo que o racismo, agravado pelo machismo, constitui-se no principal motivador da perda do nosso maior bem ancestral, a saúde. Em 2014, não adiantará estarmos bem fisicamente, com as pernas fortes para nossas marchas, se mais uma vez não estivermos de mãos dadas para darmos adeus a todas as relações e emoções militantes tristes. Na quilombagem armada de emoções revolucionárias e experiências boas para nossas ancestralidades vivas.
Carla Akotirene é militante negra feminista, mestra em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia.
Artigo publicado originalmente em http://correionago.ning.com/profiles/blogs/ent-o-natal-e-o-que-fizeram-s-mulheres-negras-1