História de músicos XXII por Joatan Nascimento
Poderia um professor de música sem visão ensinar a um aluno com a visão “normal” a ler partitura? A resposta é sim! E aconteceu comigo.
Quando me senti atraído, de fato, pelo estudo da música (aí, pelos oito, nove anos), resolvi procurar o único músico da família e me apresentar como o seu mais novo provável aluno.
Edson Martins de Mendonça, irmão caçula da minha mãe, nasceu com a visão normal e assim continuou até os seus dois anos de idade, quando um sarampo muito forte atingiu os seus olhos e lhe fez perder a visão para sempre. Nesta vida.
Minha avó, Maria Conceição de Mendonça, e meu avô, Pedro Martins de Mendonça, resolveram mandá-lo para o Recife afim de que recebesse alfabetização e se preparasse para a vida numa formação que pudesse lhe garantir instrução, mobilidade social e auto estima.
E assim, aos oito anos, o pequeno Edinho partiu para o Recife e lá ficou até os dezesseis anos. Aprendeu o sistema de leitura para cegos desenvolvido pelo francês Louis Braille, em 1827, e também música, se habilitando em trombone e mais uma infinidade de outros instrumentos. Nesta sua formação em Pernambuco, habilitou-se a não só dar aulas de música para outros cegos, mas também para pessoas com a visão normal. E foi assim que ele me ensinou teoria e percepção musical durante os três primeiros meses do meu aprendizado e as noções básicas da técnica do trompete quando, finalmente, desisti do cavaquinho, do trombone e do sax alto.
Como músico profissional, se dedicou ao repertório dos pastoris (um dos folguedos mais tradicionais do Nordeste) sendo um dos trombonistas mais requisitados em Maceió.
Quando lhe aparecia um trabalho durante o carnaval, a estratégia para que ele dominasse o repertório da orquestra era que minha tia Lourdes Maria de Mendonça, sua irmã mais velha e com quem ele viveu até a sua desencarnação, lhe ditasse a música em questão, para que ele a escrevesse em Braille e a decorasse durante a madrugada (tia Lourdes aprendeu a ler partitura para que essa transposição fosse possível e era assim que ele montava o repertório que precisava tocar).
Eu lhe tenho grande amor e gratidão. Ali começou uma caminhada forjada por tão belas mãos carregadas de afeto e generosidade. Um exemplo de força de vontade, resignação e esperança. Deixou em mim, um pouco de si e desta forma está presente na música que faço até que o próximo leve a toxa para o próximo.
Joatan é músico profissional e professor da UFBa