Vai pra onde? Vou pro Troca! por Caco Monteiro
Lendo o artigo “ACM e a política cultural” de Aninha Franco no site Caderno de Cinema, iniciativa louvável como espaço democrático de discussões culturais capitaneado pelo músico e cineasta Jorge Alfredo, me senti na obrigação de escrever algumas linhas sobre o momento cultural baiano quando comecei a minha carreira como ator profissional há 35 anos.
Sou o nono filho de uma linda família de doze. Sou o único artista, pois os meus pais, tiveram a “luz” de me colocar no final da década de 60 numa escola primária “revolucionária” chamada Escolinha de Arte da Bahia, única escola de Salvador que usava na época o método educacional “construtivista” comandada por Rosita Salgado. Dos seis aos dez anos, tive aulas de teatro, dança, canto, capoeira, artes plásticas, juntamente com as aulas de matemática, português, geografia, história, ciências, etc. Nessa escola, minha “alma artística” foi formada, onde aprendi que a coletividade, o trabalho em grupo tinha uma força maior. Finalizei o meu período primário escolar e meus pais me colocaram no Colégio Antonio Vieira para estudar o “ginásio e o científico”. No Vieira nos meados dos anos 70, fiz parte de “Grêmios ”, que organizava festivais de música, de cinema e teatro intercolegiais. Foi nesse período que atuei nos meus primeiros filmes de Super Oito (um deles chamado “O Cabeludo” dirigido por Roger Pires, filho do cineasta Roberto Pires), peças de teatro amador, etc. Em 1979 vi um espetáculo chamado “ Aquela Coisa Toda” do grupo teatral carioca “Asdrúbal Trouxe o Trombone” que me arrebatou profundamente. Era aquele tipo de teatro de grupo que queria fazer. Ainda estudante em 1979 produzi juntamente com Sahada Mendes e Anaiçara Góes a banda Gang 90 & as Absurdetes numa boate chamada Siriguela aqui em Salvador, tendo o prazer de conhecer o Julio Barroso, pra mim uma das maiores referencias de poesia e musica. Inspirados nesse momento cultural legal, ainda no ano de 1979, encenamos uma peça de criação coletiva chamada “Celacanto Provoca Maremoto”, espetáculo que tratava das angústias de uma geração que já não aguentava mais a mordaça da ditadura militar. Era um espetáculo duro e forte, porém toda vez que eu entrava em cena a platéia caia na gargalhada. Isso chamou a atenção do ator Bemvindo Siqueira, que foi assistir uma apresentação no pequeno auditório do Colégio Antônio Vieira. O Bemvindo Siqueira na época havia herdado o comando do renomado grupo teatral “Livre Teatro Livre da Bahia”, criado nos anos 70 pelo magistral diretor João Augusto. Bemvindo então me convidou para fazer parte de próximo trabalho do grupo, baseado nos almanaques muito comuns na época, um espetáculo de “revista” onde o circo, o teatro, a dança e a música se integravam com uma força muito lúdica e harmônica. Numa casa centenária linda, de três andares , muitos quartos e salas na ladeira dos galés , vivíamos intensamente esse momento cultural, uma “troupe” de 30 pessoas interessantes e loucas., agregada a uma família de circo, pois o Bemvindo havia comprado um circo, e a família dona desse circo mambembe se integrou ao grupo. Loucura total e romântica, foi nesse amontoado de gente louca que tive o prazer de conhecer , conviver e trabalhar com Moisés Augusto, Sérgio Guerra, Hilton Cobra, Emmanuel Requião, Monica Moura, Andrezinho Torreta e tantos outros. Nos apresentamos em vários bairros de Salvador no ano de 1980. Esse foi o meu primeiro grupo teatral profissional que participei. Nesse mesmo grupo, conheci Tereza Oliveira, que havia feito o trabalho coreográfico do “Almanaque do Livre Teatro Livre da Bahia para 1980”. Dois anos depois retornando dos Estados Unidos onde fui fazer um curso de linguas estrangeiras, Tereza Oliveira e Paulo Conde, produtor do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, me convidaram para fazer parte de um novo grupo chamado “Troca de Segredos em Geral”, com a proposta de montar uma versão adaptada do “Asdrúbal” uma comédia do dramaturgo russo Nicolai Gogól, “O Inspetor Geral”. Nessa época não havia tantos teatros disponíveis, um espetáculo ficava em cartaz no máximo um mês. Diversos espaços foram criados para suprir a sede artística local pós ditadura militar, espaços como “A Fábrica”, um casarão na rua da paciência no rio vermelho, sob a batuta de Marcio Meirelles e Maria Eugênia Millet a frente do grupo teatral Avelãs & Avestruz, a cultura negra que se mobilizava no Forte Santo Antônio, o Teatro Vila Velha com Carlos Petrovich, o próprio espaço Blêfe de Aninha Franco e Rita Assemany, no Teatro Maria Bethânia. Cada um no seu quadrado independente e privado. Pois bem, estreamos o Inspetor na antiga sala do côro do TCA, e queríamos mais. Fomos pro interior da Bahia para não parar de encenar a peça. Voltamos pra Salvador e o Paulo Conde, descobriu que a prefeitura tinha uma estrutura metálica (os ferros) de um circo jogada num galpão… um mastro, vários mastaréus e dezenas de paus de roda deitados ao relento sem nenhuma utilidade. Praticamente um circo adormecido, sem o seu cobertor, a lona. Fomos a prefeitura e a Marinha do Brasil, pedir a estrutura e o terreno, respectivamente, para que pudéssemos ter um espaço para se apresentar. Conseguimos através de doações de parentes o dinheiro suficiente para pagar a primeira parcela de uma nova lona, e demos um cheque a perder de vista para a segunda parcela. No dia 17 de Fevereiro de 1983, o Gran Circo Troca de Segredos estreou com o show voz e violão antológico de Caetano Veloso, que doou toda a renda do evento para que seguíssemos adiante. Aí fudeu!
Na beira do mar no bairro de Ondina, um espaço redondo onde ele, o circo encaixou como se fosse uma nave em forma de pirâmide, que pousou pra cuspir todas as formas do fazer cultural: musica, teatro, dança, escola de circo, bailes, lançamento de livros, palestras, discussões e elocubrações do momento cultural da cidade da Bahia. O circo era o ponto de encontro da cidade onde o saber, a alegria e a libido se encaixavam e faziam um ménage a trois. Vários casamentos foram feitos e desfeitos debaixo daquela lona. Várias palavras foram ditas e vários cantos encantaram diversas gerações. Vários segredos foram trocados debaixo daquela espaçonave circense.
O espaço se tornou, além de expositor de talentos de diversas correntes alternativas culturais locais, como também palco do que havia de melhor no avante-guarde cultural local e nacional da época: “Vai pra onde?! Vou pro Troca!! Ver quem?! Todo mundo!!”.
Falei tudo isso pra dizer que não tenho paciência para as viúvas de ACM e que já existiu vida cultural na Cidade da Bahia sem as intervenções dos ACMs, dos Dourados, dos Guerreiros e dos Francos da vida. Existiu uma diversidade cultural de verdade na cidade, independente da atuação do Estado como patrocinador cultural! Viva o Gran Circo Troca de Segredos e tudo que ele representou como voz cultural da Cidade da Bahia nos primeiros anos da Abertura.
Como disse um dos meus gurus Raul Seixas “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade” e assim foi o Circo Troca de Segredos, e assim que pauto os meus 35 anos de carreira como profissional da arte.