América Latina na era da cyberguerra por Julian Assange |
Cidadania | |||
Seg, 15 de Julho de 2013 22:29 | |||
O que começou como meio para preservar a liberdade individual pode agora ser usado por Estados menores, para frustrar as ambições dos maiores.
O cypherpunks [1] originais eram, na maioria, californianos libertaristas [2]. Eu vim de tradição diferente, onde todos nós buscávamos proteger a liberdade individual contra a tirania do Estado. Nossa arma secreta era a criptografia. Já se esqueceu o quanto isso foi subversivo. A criptografia, então, era propriedade exclusiva dos Estados, para uso em suas muitas guerras. Ao escrever nossos próprios programas e distribuí-los o mais amplamente possível, liberamos a criptografia, a democratizamos e a espalhamos pelas fronteiras da nova internet. Nosso trabalho em WikiLeaks implica compreensão semelhante da dinâmica da ordem internacional e da lógica do império. Durante o período de formação de WikiLeaks, encontramos evidências de pequenos países abusados e dominados por países maiores, ou infiltrados por empresas de fora, forçados agir contra eles próprios. Vimos o desejo popular ao qual não se dava voz e expressão, eleições compradas e vendidas, e países ricos, como o Quênia, assaltados e leiloados por plutocratas em Londres e em New York. A luta pela autodeterminação latino-americana é importante para muito mais gente do que os que vivem na América Latina, porque mostra ao resto do mundo o que pode ser feito. Mas a independência da América Latina ainda engatinha. Tentativas para subverter a democracia latino-americana ainda acontecem, inclusive recentemente, em Honduras, Haiti, Equador e Venezuela. Por isso a mensagem dos cypherpunks tem importância especial para os públicos latino-americanos. A vigilância em massa não é só problema para a governança e a democracia – é uma questão geopolítica. Se a população de um país inteiro é vigiada por país estrangeiro, há ameaça contra a soberania. Intervenção após intervenção nos assuntos da democracia na América Latina ensinaram-nos a ser realistas. Sabemos que os velhos poderes ainda explorarão, para benefício deles, qualquer possibilidade de retardar ou suprimir a eclosão da independência latino-americana. Considere-se a simples geografia. Todos sabem que os recursos em petróleo regem a geopolítica global. O fluxo do petróleo determina quem é dominante, quem é invadido, quem é posto em ostracismo fora da comunidade global. O controle físico sobre um segmento de oleoduto define maior poder geopolítico. Governos que se ponham nessa posição podem obter concessões gigantescas. Num golpe, o Kremlin pode condenar a Europa Oriental e a Alemanha a um inverno sem calefação. E até a possibilidade de Teerã controlar um oleoduto para o leste, até Índia e China, é pretexto para a lógica belicosa de Washington. Mas o novo grande jogo não é a guerra por oleodutos. É a guerra pelos dutos pelos quais viaja a informação: o controle sobre as vias de cabos de fibras óticas que se espalham pela terra e pelo fundo dos mares. O novo tesouro global é o controle do fluxo gigante de dados que conecta todos os continentes e civilizações, conectando as comunicações de bilhões de pessoas e empresas. Não é segredo que, na Internet e no telefone, todas as rotas que entram e saem da América Latina passam pelos EUA. A infraestrutura da Internet dirige 99% do tráfego que entra e que sai da América do Sul por linhas de fibras óticas que atravessam fisicamente fronteiras dos EUA. O governo dos EUA não mostrou qualquer escrúpulo quanto a quebrar sua própria lei e plantar escutas clandestinas nessas linhas e espionar os seus próprios cidadãos. Todos os dias, centenas de milhões de mensagens de todo o continente latino-americano são devoradas por agências de espionagem dos EUA, e armazenadas para sempre em armazéns do tamanho de pequenas cidades. Os fatos geográficos sobre a infraestrutura da Internet, portanto, têm consequências sobre a independência e a soberania da América Latina. O problema também transcende a geografia. Muitos governos e militares latino-americanos protegem seus segredos com maquinário de criptografia. São caixas e programas que “desmontam” as mensagens na origem e as “remontam” no destino. Os governos compram essas máquinas e programas para proteger seus segredos – quase sempre o próprio povo paga (caro) –, porque temem, corretamente, que suas comunicações sejam interceptadas. Mas as empresas que vendem esses equipamentos e programas caros mantêm laços estreitos com a comunidade de inteligência dos EUA. Seus presidentes e altos executivos são quase sempre matemáticos e engenheiros da Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) capitalizando as invenções que eles mesmos criaram para o Estado de Vigilância. Não raras vezes, as máquinas que vendem são quebradas: quebradas propositalmente, por uma razão. Não importa quem as use ou como as usem – as agências dos EUA conseguem “remontar” os sinais e leem as mensagens. Esse equipamento é vendido para a América Latina e outros países como útil para proteger os segredos do comprador, mas são, de fato, máquinas para roubar aqueles segredos. Enquanto isso, os EUA aceleram a próxima grande corrida armamentista. A descoberta do vírus Stuxnet vírus – e depois dos vírus Duqu e Flame – marca o início de uma nova era de programas complexos usados como arma, que estados poderosos fabricam para atacar estados mais fracos. A primeira ação agressiva contra o Irã visou a minar os esforços daquele país com vistas a defender sua soberania – ideia que é anátema para os interesses de EUA e de Israel na região. Longe vai o tempo em que usar vírus de computador como arma de ataque era peripécia de romance de ficção científica. Agora, é realidade global, que se espalha graças ao comportamento leviano do governo de Barack Obama, em violação da lei internacional. Outros estados agora por-se-ão na mesma trilha, aumentando a própria capacidade de ataque. Os EUA não são os únicos culpados. Em anos recentes, a infraestrutura de Internet de países como Uganda tem recebido grandes investimentos chineses. Gordos empréstimos chegam, em troca de contratos africanos para que empresas chinesas construam a espinha dorsal da infraestrutura de Internet ligando escolas, ministérios do governo e comunidades ao sistema global de fibra ótica. A África vai-se conectando online, mas com máquinas vendidas por potência estrangeira aspirante ao status de superpotência. A Internet africana será o meio pelo qual o continente continuará subjugado no século 21? Esses são algumas das importantes vias pelas quais a mensagem dos cypherpunks vai além da luta pela liberdade individual. A criptografia pode proteger não só as liberdades civis e os direitos individuais, mas a soberania e a independência de países inteiros, a solidariedade entre grupos que lutem por causa comum, e o projeto da emancipação global. Pode ser usada para enfrentar não só a tirania do estado contra o indivíduo, mas a tirania do império contra estados menores. O grande trabalho dos cypherpunks ainda está por fazer. Junte-se a nós. Notas
[1] Sobre cypherpunks, ver também 14/11/2011, “30 anos de hacking político”, emhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2011/11/30-anos-de-hacking-politico.html e 6/6/2012, e 6/6/2012, “Assange entrevista n. 8: os Cypherpunks” (parte 1 emhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/06/assange-entrevista-no-8-cypherpunks-1.html e parte 2 emhttp://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/06/assange-entrevista-no-9-cypherpunks.html [NTs].
[2] Orig. “libertarian”. Nos EUA, são liberais conservadores, que combatem, sobretudo o Estado, sem qualquer associação ou conotação com comunistas anarquistas. O movimento Tea Party, por exemplo, é dito libertarian. Dadas as conotações comunistas anarquistas do adjetivo (port.) “libertário”, que aqui absolutamente NÃO CABEM, optamos pela neologia “libertarista”. É solução tentativa, há outras possibilidades, e todos os comentários e correções são bem-vindos [NTs]. Julian Assange - Editor-chefe do Wikileaks foi agraciado com o Amnesty International New Media Award em 2009 e o Sydney Peace Foundation Gold Medal, o Walkley Award for Journalism e o Martha Prize em 2011. Colaborador original da lista de discussão Cypherpunk, criou inúmeros projetos de software alinhados com a filosofia do movimento, inclusive o sistema de criptografia rubberhose e o código original para o Wikileaks. É coautor, com Suelette Dreyfus, de Underground, uma história do movimento internacional de hackers.* Tradução: Vila Vudu
Artigo publicado originalmente em http://outraspalavras.net/mundo/america-latina/a-america-latina-na-era-da-cyberguerra/
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