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Solução brasileira ou islandesa? por Antonio David
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Cidadania
Qui, 18 de Julho de 2013 02:32

passe_livre_sao_pauloVladimir Safatle é um dos intelectuais de esquerda mais eruditos e agudos da atual geração. Em sua coluna para a Folha de S. Paulo (2/7), Safatle escreveu:

”/…/ a única ideia sensata depois de semanas de ações paliativas para aplacar as manifestações populares foi a proposta de uma constituinte da reforma política capaz de colocar em questão todo o sistema atualmente em funcionamento. A ideia era tão sensata que foi abandonada em menos de 24 horas.

No seu lugar, ficou um plebiscito canhestro, em que a população será chamada a responder perguntas que ela não colocou. Ou alguém imagina que o povo brasileiro foi às ruas para decidir se as eleições teriam lista fechada ou aberta, voto distrital ou estadual? Há algo de piada de mau gosto nesse tipo de manobra”.

Entretanto, essa não foi a primeira vez em que Vladimir Safatle expõe o que pensa sobre o instrumento plebiscito. Em seu livro A esquerda que não teme dizer seu nome (Três Estrelas, 2012), ao tratar da soberania popular – que ele entende ser um dos pilares do programa da esquerda –, Safatle discute o episódio do golpe de Estado em Honduras ocorrido em 2009, cuja motivação imediata foi a iminente realização de um plebiscito, contra o qual as elites locais se insurgiram:

“O plebiscito é simplesmente a essência fundamental de toda vida democrática, e falar em “golpe plebiscitário” é uma das maiores aberrações que se possa imaginar. O dia em que um plebiscito equivaler a um golpe de Estado, então nossa noção de democracia estará completamente esvaziada. Ela perderá todo o seu valor”. (p. 56)

Claro está que, para Safatle, o povo brasileiro não foi às ruas para reivindicar o que a presidente Dilma propôs como temas do plebiscito. Supostamente, nisso estaria a diferença entre o plebiscito de Honduras e o plebiscito atualmente em debate no Brasil.

Mas, afinal, se o povo não foi às ruas “para decidir se as eleições teriam lista fechada ou aberta, voto distrital ou estadual”, o povo foi às ruas para reivindicar o quê?

Não seria necessário recorrer às pesquisas de opinião, embora essas também mostrem o que todos nós vimos nas ruas. De um lado, melhora radical nos serviços públicos; de outro, combate à corrupção.

Se assim é, então não se trata de saber se o povo colocou as questões propostas para o plebiscito, mas sim de saber se as questões propostas para o plebiscito tocam nos problemas concretos que motivaram o povo a ir para as ruas. Creio que sim, pelos motivos a seguir.

Em primeiro lugar, a não ser que concordemos com o editorial do Estadão (4/7) – porta-voz da classe média tradicional e da burguesia paulistas – para o qual “a corrupção não resulta dessas ou daquelas normas eleitorais e partidárias, mas da falta de escrúpulos dos beneficiários dos malfeitos”, seremos obrigados a dizer que a corrupção não se reduz a mera questão moral; é estrutural e sistêmica.

É evidente que as questões propostas para o plebiscito não acabarão com a corrupção, cuja raíz é histórica, vem de nosso passado colonial, e persiste em última instância na abissal desigualdade existente no Brasil.

Mesmo assim, a corrupção é favorecida por um determinado sistema político e eleitoral, e são mecanismos-chave desse sistema que serão postos à prova no plebiscito. Talvez não tocará em todos, nem nos mais importantes, mas certamente tocará em parte deles.

Em segundo lugar, se realizado da forma como foi proposto pelo Planalto, o plebiscito tocará não apenas na corrupção, mas também na lógica da governabilidade.

Ora, se a população foi às ruas para exigir uma radical melhora nos serviços públicos, não é exatamente a lógica de governabilidade, com seus constrangimentos e enquadramentos, que impede o governo de concretizar tal melhora?

Não é por outro motivo que a governabilidade mereceu a crítica de Vladimir Safatle em seu livro:

“Como se a governabilidade justificasse a acomodação final da esquerda nacional a uma semidemocracia imobilista, de baixa participação popular indireta e com eleições em que só se ganha mobilizando, de maneira espúria, a força financeira com seus corruptores de sempre”. (p. 14)

Acaso não é exatamente a “força financeira” dos “corruptores de sempre” que está em jogo com o financiamento público de campanha? Aqui, novamente: com o plebiscito, não se trata de dar o golpe final na força financeira dos corruptores de sempre, mas um golpe importante.

Não é a toa que a direita está em campanha aberta contra o plebiscito. A tese de que o plebiscito é cortina de fumaça para encobrir problemas do país já está na boca da classe média.

E nós, o que devemos fazer? Da parte da esquerda, há maneiras e maneiras de criticar o plebiscito e suas limitações. Uma maneira que me parece inteligente é fazer como Valter Pomar, dirigente do PT, ou como fez Ivan Valente, presidente nacional do PSOL. Disputar o conteúdo do plebiscito, sem deixar de tomar parte na disputa real: o plebiscito deve acontecer.

Entretanto, para Safatle, o plebiscito “canhestro” teria vindo como uma compensação “de mau gosto” pela retirada da proposta da Constituinte. Aqui entra a “solução islandesa”.

Solução islandesa

Em seu artigo na Folha de S. Paulo, Safatle escreve:

“Assim como o povo brasileiro, o povo da pequena Islândia um dia descobriu que estava em crise de representação”.

Safatle discorre em seguida sobre o processo constituinte da pequena Islândia, para então concluir:

“Se alguém realmente ouvisse a população em nossos governos, a solução islandesa seria aplicada e as propostas de reforma política sairiam de fóruns de participação direta pela sábia mão do acaso. Isso, entretanto, seria pedir demais para quem, no fundo, tem medo das massas”.

Mas será que o problema pode mesmo ser reduzido a “medo das massas”?

Este artigo não parece ter sido escrito pela mesma pessoa que, poucos meses antes, escreveu:

“[A esquerda] deve ser capaz de detalhar ao máximo suas ações e os cenários possíveis que essas engendrariam. Ela deve mostrar estar ciente das dificuldades e da melhor maneira de vencê-las, isso sem ter que apelar para ideias vagas como ‘tudo se resolve por meio da vontade política’” (A esquerda que não teme dizer seu nome, pp. 16-17).

Não seria o “medo das massas” uma “ideia vaga” tanto quando “tudo se resolve por meio da vontade política”?

É desnecessário cansar o leitor deste artigo com dados comparativos, que só comprovariam o óbvio: Islândia e Brasil não são a mesma coisa. Mesmo assim, talvez seja útil o esforço de responder à pergunta: Por que a solução islandesa não foi adotada?

A solução islandesa foi posta à mesa, mas logo foi retirada. Por que foi posta, e por que foi retirada? A razão reside no fato puro e simples de que o governo Dilma tem “medo das massas”, ou residiria em outro lugar?

A resposta a essa pergunta talvez seja a chave para compreendermos os reais impasses do lulismo.

Classes e suas frações

Até aqui, temos adotado a narrativa de Safatle: “o povo foi às ruas…”. Ocorre que quem foi às ruas não foi o “povo”, em abstrato. Talvez o coro em uníssono contra a corrupção e o verde-amarelismo tenham criado a impressão de uma pasteurização.

Contudo, saíram às ruas duas frações de classe bem definidas, cujos interesses são antagônicos: de um lado, uma parcela do proletariado – jovens trabalhadores, que ascenderam socialmente através do ensino e hoje, encontrando-se submetidos a condições de trabalho no setor de serviços com alta rotatividade e estimulados ao consumo, vivem sob forte tensão; de outro, a classe média tradicional – profundamente reacionária. Aquela quer mais conquistas, mais direitos, melhores condições de vida e de trabalho. Essa quer os “mensaleiros” na cadeia. De certa forma, uma e outra almejam o exato oposto para o Estado brasileiro.

Será que algumas dessas frações de classe saiu às ruas para reivindicar “fóruns de participação direta”, como Safatle supõe? É certo que o tom antipartido das manifestações fez parecer haver uma demanda por democracia direta. Porém, se a tônica das manifestações era “contra os partidos e os políticos”, pesquisa feita em São Paulo mostrou que mais de 50% dos manifestantes têm candidato para 2014: Joaquim Barbosa e Marina Silva. Contra os partidos, pessoas.

Para tornar o quadro mais complexo, uma parcela majoritária da classe trabalhadora não saiu às ruas. A fração que André Singer chama de subproletariado (a base social e eleitoral do lulismo) ficou em casa vendo os protestos pela televisão. Possivelmente com alguma desconfiança. Essa fração de classe, como mostra André Singer em seu livro Os sentidos do lulismo (Companhia das Letras, 2012), rejeita a radicalização política. E tem razões para tal.

O governo acertou em associar a rejeição à corrupção expressa nas manifestações com a Constituinte Exclusiva. Pesquisa do Datafolha mostrou que 73% dos brasileiros apoiaram a proposta. Por que o governo recuou? Por que a mídia faria campanha contra? Por que, ao cabo, o Congresso e o STF derrubariam-na? Isso tudo é verdade, mas é apenas parte da verdade. O governo recuou justamente porque está olhando para as classes sociais.

Talvez o governo tenha percebido que estes 73% que declararam apoiar a proposta não se converteriam em mobilização de massa, pois o que motiva os manifestantes a ir para as ruas são os fins, não os meios, e não há nenhuma fração de classe disposta a ir para as ruas pela Constituinte. Exceto se houvesse radicalização política.

Fez-se um cálculo: de um lado, apostar na Constituinte, e, exceto se houvesse radicalização política, correr o alto risco de perder a oportunidade aberta pelas manifestações; de outro lado, apostar no plebiscito, cujo risco parece ser menor. A opção, à maneira do lulismo, foi pelo menor risco e sem radicalização.

Ao cabo, para avaliar se o governo errou ou acertou em retirar a proposta (ou em tê-la colocado antes), só há um critério: que classes e frações de classe dariam sustentação para a proposta, e que classes e frações de classe combateriam a proposta?

É impossível responder com certeza a tais perguntas, mas é possível e necessário fazer cálculos, “detalhar ao máximo suas ações e os cenários possíveis que essas engendrariam”. Se o governo errou ao recuar, não é porque procura seguir à risca este princípio?

Mas isso não esgota o problema, pois tal raciocínio parte de um pressuposto: evitar a radicalização política. Portanto, ele apenas evidencia a ponta do iceberg. Diante de tal raciocínio, alguém poderia objetar: “O governo deveria manter a proposta de Constituinte! A classe trabalhadora daria apoio à proposta! Basta investir na radicalização! O governo recusa a radicalização e o enfrentamento em seus cálculos políticos!”.

Justo. O governo poderia apostar nesse caminho: o caminho da radicalização política. Por que não aposta? Porque o lulismo guarda em si um paradoxo.

O paradoxo do lulismo

A classe trabalhadora brasileira não é um todo homogêneo. Possui frações. Além do proletariado fabril, cujo paradigma é o metalúrgico, há uma nova classe trabalhadora, predominantemente jovem, que ascendeu via ensino superior privado, que consome mais, tem maiores expectativas, mas não enxerga perspectivas de futuro no mercado de trabalho. Por isso, vive sob tensão. E as ruas mostraram que essa tensão pode ser canalizada tanto pela esquerda como pela direita.

Por outro lado, há uma outra fração da classe trabalhadora, muito superior em tamanho, que ainda vive em condições de pobreza e miséria, e que constitui a principal base social e eleitoral do lulismo.

Segundo André Singer, essa fração quer mudanças, mas possui um traço conservador: rejeita a radicalização política, pois associa o tumulto social ao desemprego e à carestia. Para mantê-los a seu lado e favorecê-los, a estratégia dos governos Lula e Dilma consiste em evitar a radicalização. De fato, este setor tem sido beneficiado: a pobreza e a desigualdade estão caindo – o traço conservador está na lentidão do processo.

Mas há aqui um paradoxo.

O governo tem razões para evitar a radicalização política: a radicalização suscitaria crises, instabilidade, fuga de capitais etc., o que tenderia a elevar o nível de desemprego e a afetar diretamente o subproletariado. Nessa situação, além do risco de ver bloqueado o processo (lento) de redução da pobreza – o qual depende do Estado e, portanto, dá-se necessariamente no interior de uma correlação de forças adversa, tendo de haver-se com a lógica da governabilidade –, essa fração de classe provavelmente enxergaria na direita uma alternativa política, como fez em 1989, 1994 e 1998, quando deu a vitória para Collor e FHC; some-se a isso o fato de que hoje a classe média tradicional é, dentre todas as classes, aquela que está se sentido mais prejudicada e tem maior força de ânimo para ir às ruas manifestar seu descontentamento com pitadas de protofascismo, como já ocorreu outrora na história do Brasil.

Porém, na medida em que viabiliza a ascensão social dos de baixo, a estratégia precisa cada vez mais fazer enfrentamentos, pois a continuidade da ascensão depende de reformas estruturais, a começar pela melhora radical dos serviços públicos.

Além disso, precisa viabilizar a organização e a mobilização da nova classe trabalhadora, caso contrário essa fração de classe poderá optar por alternativas conservadoras. Se a nova classe trabalhadora pender para a direita, não se trata de perder apenas o governo nas urnas. É o processo em curso de combate à pobreza e à desigualdade que será bloqueado.

Dito isso, o impasse da estratégia do lulismo pode ser colocado nestes termos: de um lado, o lulismo precisa evitar a radicalização, não só por razões eleitorais, mas também por razões econômicas: a radicalização provavelmente paralisaria o governo, enquadrado que está pelo Congresso e pelo Judiciário, e provavelmente elevaria o desemprego, fazendo voltar a aumentar a desigualdade; de outro, é necessário preparar-se para a radicalização, pois, na medida em que os trabalhadores ascendem, a radicalização torna-se inevitável.

É lugar comum a constatação de que o lulismo é a estratégia da acomodação, do amortecimento; mas essa é uma meia verdade. Pois, na medida em que o tempo passa, a estratégia do lulismo alimenta cada vez mais o conflito, cria condições cada vez mais favoráveis para a luta. Eis o paradoxo. Prova disso é o ascenso de greves operárias em curso atualmente, relacionado não à piora no mercado de trabalho, mas justamente ao oposto, permitindo inclusive que mais de 95% dos reajustes salariais situem-se acima da inflação.

Contraditório, o lulismo envolve um pacto conservador ao mesmo tempo em que guarda em si uma vocação igualitarista. Mas suas promessas de igualdade só poderão ser realizadas se o lulismo tiver força para superar-se, ultrapassar o paradoxo inscrito nele mesmo. Terá? Invejo os que têm capacidade de dizer categoricamente “sim” ou “não” – mas desconfio que estão todos blefando.

A raíz do paradoxo

Qual é a origem do paradoxo?

Em outro artigo publicado recentemente, O tempo do esgotamento (Carta Capital, maio/2013) Safatle afirma que “o ciclo do ‘lulismo’ acabou por não ter tido condição de aprofundar suas políticas”. O ciclo de fato acabou?

Toda sociedade é dividida. A sociedade brasileira também é, mas com uma diferença: nossa sociedade é muito dividida. A Islândia, com seus 350 mil habitantes e Índice Gini de uma sociedade com elevadas condições de vida, é um bom exemplo do que o Brasil não é. Na verdade, o Brasil figura entre os países mais desiguais do mundo. O exato oposto da Islândia.

Ao afirmar que o ciclo do lulismo acabou, é essa enorme divisão que Safatle perde de vista. Aqui novamente não vou cansar o leitor com números, embora devesse. Não é raro ler e ouvir que o subproletariado não existe; há ainda aqueles que reconhecem a existência dessa fração de classe, mas que atribuem a ela o que na verdade faz parte do proletariado. Estou falando do curioso fenômeno da invisibilidade do subproletariado. Mas este é assunto para outro momento.

Por ora, basta lembrar que, segundo dados do IBGE de 2011, dos brasileiros em idade ativa, 23,6% ganham até 1 salário mínimo, e 22,4% ganham de 1 a 2 salários mínimos. Ainda há uma parcela da população brasileira –  quase metade da população – que vive abaixo da condição proletária, sem condições de participar da luta de classes.

Se o principal instrumento de combate à pobreza e à desigualdade no lulismo é o salário mínimo, que nos últimos dez anos teve ganho superior a 70% acima da inflação, cabe a pergunta: acaso a política de valorização do salário mínimo esgotou-se?

Há outros números sobre a classe trabalhadora e medidas do governo Dilma que poderiam ser evocados para comprovar que o processo de redução da pobreza, cujo foco é o subproletariado, ainda está em curso, nos marcos do lulismo. Não vou fazê-lo, primeiro porque estão disponíveis a quem tiver interesse em saber, segundo porque de nada serviriam.

Meu objetivo não é desmentir a constatação feita por Safatle de que as políticas não foram aprofundadas. Essa é uma verdade. É parte do paradoxo. Ocorre que não é toda a verdade, mas apenas parte dela. O erro ocorre quando se confunde a parte com o todo.

Ao amparar-se nessa constatação a fim de sustentar que o lulismo esgotou-se, Safatle está olhando apenas para o proletariado e ignorando solenemente a existência do subproletariado. Olha para uma parte da realidade, e ignora outra. Ora, se a esquerda precisa ter a coragem de dizer seu nome, ela precisa antes saber para quem almeja dizer. Não pode ignorar a parcela majoritária da classe trabalhadora!

A sociedade brasileira é tão desigual que o proletariado no Brasil não é a base da pirâmide, mas um estrato intermediário.

Há ainda um complicador adicional. Se o lulismo surge na opção pelos mais pobres, ou seja, se o projeto lulista consiste em “favorecer o subproletariado” (André Singer, Os sentidos do lulismo, p. 165), é forçoso ver que o lulismo emerge como uma resposta àquele que, para Safatle, é nada menos do que “o principal problema que acomete a esquerda atual”:

“/…/ o principal problema que acomete a esquerda atual é sua dificuldade em ser uma esquerda popular. Isso significa duas coisas: saber expor problemas sociais a partir da perspectiva dos que são mais vulneráveis a eles e, sobretudo, ser um enunciador crível para tais camadas populares”. (A esquerda que não teme dizer seu nome, p. 16)

Ora, o lulismo surge do movimento de aproximação do PT, num primeiro momento, e do governo Lula, num segundo momento, junto aos mais pobres, aos “mais vulneráveis”. Foram eles que pautaram o PT e o governo, não o oposto. É porque está organicamente ligado a eles que o PT e o governo evitam a radicalização, não o oposto. Aliás, os “mais vulneráveis” – dezenas de milhões –, não foram para as ruas.

A origem do paradoxo do lulismo reside, pois, em nosso atraso histórico. Esse atraso expressa-se na profunda divisão da sociedade brasileira. Nossa sociedade não é apenas dividida; é muito dividida. Talvez o problema maior do governo não está no fato de o lulismo ser alvejado pela classe média e enquadrado pela burguesia, mas no fato de encontrar-se prensado entre duas frações da classe trabalhadora, e no fato de não poder rifar nenhuma delas.

Para se ter dimensão do problema, já em 1981 – num texto em que, assim como Safatle, Florestan procura ultrapassar a dicotomia entre Reforma e Revolução – Florestan Fernandes escreve: “[a burguesia brasileira] teme a massa (dos pobres) e a classe (dos trabalhadores), mas possui um medo ainda maior da conjunção e união das duas entre si”. Trinta anos depois, o problema persiste. A diferença é que agora foi evidenciado.

Como enfrentar o paradoxo? Não ouso oferecer respostas. Essa é a questão central, para a qual toda esquerda deve procurar respostas. Arrisco apenas uma afirmação: o governo precisa acelerar a incorporação do subproletariado ao proletariado.

Do tempo das ideias

Salvo raras exceções, os intelectuais de esquerda vêem só um dos lados do paradoxo: ou bem constatam a impossibilidade de radicalização; ou bem constatam a necessidade de radicalização. Os primeiros costumam ficar na defensiva, olhando para o retrovisor, como se pudessemos viver das conquistas que já tivemos; os outros costumam idealizar a realidade, dando como líquida e certa a vitória, desde que tenhamos um governo verdadeiramente de esquerda. Ambos vêem a verdade, ou uma parte dela. O problema está em tomar o todo pela parte.

O problema precisa ser encarado de todos os lados. O ponto é que há razões para evitar a radicalização, ao mesmo tempo em que há razões para investir na radicalização. A análise que se limita a um ou outro aspecto pode render aplausos ou vaias (depende do público), mas equivale a fugir do problema real. E fugir só concorre para a “petrificação do discurso” (p. 15).

Vladimir Safatle é um intelectual inteligente. Seu livro A esquerda que não teme dizer seu nome é uma das poucas obras da última década que consegue ultrapassar essa dicotomia. Por isso é leitura obrigatória.

Contudo, no artigo aqui discutido, Safatle incorreu num grave erro. Ao invés de analisar a situação da perspectiva das classes, ele o fez da perspectiva de um abstrato “povo brasileiro”, como se o povo fosse um todo homogêneo, quando na verdade é recortado de cima a baixo por conflitos e divisões.

Ignorando as divisões de classe existentes em nossa sociedade e a maneira como cada fração de classe se situa na atual conjuntura, bem como as reais motivações e inclinações de cada fração neste momento e suas tendências, partindo do pressuposto da existência de um povo homogêneo em busca da “participação direita”, a conclusão não poderia ser outra: ao invés de uma proposta de síntese, Safatle ofereceu uma lição de moral. Para a esquerda democrática, que historicamente “não sabe como governar e intervir nas tendências da governabilidade” (p. 74), não é um bom aprendizado.

A questão toda está em saber como enfrentar o paradoxo do lulismo, imposto pelo atraso histórico de nosso país, expresso numa divisão social abissal, e que com o lulismo finalmente veio à tona. Enfrentar o paradoxo equivale a propor sínteses. Pressupõe uma leitura do Brasil. Exige uma solução brasileira.

Antônio David  é pós-graduando em filosofia na USP

Artigo publicado originalmente em http://www.viomundo.com.br/politica/antonio-david.html

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