As derrotas dos barões da mídia por Altamiro Borges |
Cidadania | |||
Ter, 11 de Março de 2014 23:58 | |||
Em 2013, o debate sobre o poder ditatorial dos meios de comunicação e sobre a urgência da regulação democrática da mídia ganhou impulso no mundo inteiro. Até o Reino Unido, chocado com os escândalos de corrupção e invasão de privacidade do império de Rupert Murdoch, aprovou uma dura legislação. A Rainha Elizabeth 2ª se tornou, na visão dos barões da mídia, a nova “chavista” do planeta. Os avanços mais sensíveis se deram na América Latina. Infelizmente, o Brasil se manteve na posição da “vanguarda do atraso” no enfrentamento desta questão estratégica. O “Royal Charter” britânico Os monopólios do setor fizeram de tudo para sabotar a nova lei. Ingressaram na Justiça, pressionaram parlamentares e até atacaram a “sagrada” monarquia britânica. A pressão, porém, não evitou que a rainha ratificasse a “Royal Charter”, a carta real sobre a mídia imprensa. Os poderes públicos se viram pressionados pela sociedade, que não engoliu os crimes praticados pelo jornal “News of the Word”, do empresário australiano Rupert Murdoch. O tabloide, que subornou e grampeou telefones ilegalmente, inclusive foi fechado e seus diretores podem ir para a cadeia. Pela lei aprovada, o novo órgão regulador poderá aplicar multas de até 1 milhão de libras (R$ 3,7 milhões), além de impor correções e pedidos de desculpas por parte de jornais e revistas com o mesmo destaque dado pelas matérias caluniosas. Ele será composto por integrantes indicados de forma independente, sendo vedada a participação de editores dos veículos privados. Já o código de ética exige “respeito pela privacidade onde não houver suficiente justificativa de interesse público”. Qualquer pessoa que alegar ter sido atingida por reportagens poderá acionar o órgão. A defesa do pluralismo na Europa Entre outros pontos, o relatório realça que “o conceito de liberdade de mídia está intimamente relacionado à noção de liberdade de expressão, mas não é idêntico a ela. A última está entronizada nos valores e direitos fundamentais da Europa: ‘Todos têm direito à liberdade de expressão... Pluralismo na mídia é um conceito que vai muito além da propriedade... Pluralismo inclui todas as medidas que garantam o acesso dos cidadãos a uma variedade de fontes e vozes de informação, permitindo a eles que formem opiniões sem a influência indevida de um poder dominante”. Para o desespero dos barões da mídia, o documento propõe a introdução da educação para a leitura crítica da mídia nas escolas secundárias; o monitoramento permanente do conteúdo da mídia por parte de organismo oficial; a total neutralidade de rede na internet; a provisão de fundos estatais para o financiamento da mídia alternativa que seja inviável comercialmente, mas essencial ao pluralismo; a existência de mecanismos que garantam a identificação dos responsáveis por calúnias e a garantia da resposta e da retratação de acusações indevidas. “Todos os países da União Europeia deveriam ter conselho de mídia independente, cujos membros tenham origem política e cultural equilibrada, assim como sejam socialmente diversificados. Esses organismos teriam competência para investigar reclamações (...), mas também certificariam de que as organizações de mídia publicaram seus códigos de conduta e revelaram detalhes sobre propriedade... Os conselhos de mídia devem ter poderes legais, tais como imposição de multas, determinar a publicação de justificativas e cassação do status jornalístico”, afirma o relatório. Espionagem e atritos nos EUA Se na Europa o debate sobre a regulação democrática da mídia produziu alguma luz, na pretensa “pátria da democracia”, os EUA, ele só gerou atritos e nada de concreto. Mesmo assim, o tema esteve na ordem do dia. Durante vários meses, o presidente Barack Obama e os impérios midiáticos se digladiaram. O governo acusou abertamente a rede Fox, do mesmo Rupert Murdoch, de se transformar no braço político do Partido Republicano e da sua corrente mais fascistoide, o Tea Party. Já os veículos acusaram a Casa Branca de monitorar os seus repórteres e promover retaliações. Em junho passado, num fato inédito, as corporações midiáticas chegaram a boicotar uma reunião com o secretário de Justiça, Eric Holder. A crise decorreu das revelações de que o governo espionava jornalistas. A agência de notícias Associated Press e a TV Fox News tiveram telefonemas e e-mails de seus repórteres monitorados pelo Departamento de Justiça, que investigava o vazamento de informações consideradas confidenciais pelo governo. Diante do escândalo, que desmistifica a “pátria da democracia”, Barack Obama aceitou conter as medidas de monitoramento. O armistício, porém, não soluciona os crescentes atritos entre o governo dos EUA e as poderosas corporações midiáticas. Estudos indicam que a concentração do setor tem aumentado no país, reforçando assustadoramente o poder destes impérios. Mais de 120 jornais faliram nos últimos anos e apenas os grandes sobrevivem à avassaladora crise da mídia impressa. Já as emissoras de televisão “atravessam intensa concentração nos EUA”, segundo reportagem de Nelson de Sá, publicada em julho passado na Folha. Através de aquisições e fusões, a mídia fica ainda mais monopolizada. Nelson de Sá cita dois exemplos nos setores de TV a cabo e TV aberta. “No primeiro, a Charter, controlada por John Malone, tenta comprar o serviço da Time Warner. Negócios semelhantes estariam sendo discutidos entre a Cablevisión e a Cox e, no âmbito das operadoras de TV por satélite, entre a Dish e a DirecTV. No segundo setor, pequenos grupos de emissoras abertas estão se consolidando em grupos maiores, como na compra das 19 estações do Local TV pelo Tribune por US$ 2,7 bilhões”. América Latina na vanguarda Em 2013, a América Latina se manteve na vanguarda da luta pela regulação da mídia. A região conhece bem os estragos causados por uma mídia concentrada e manipuladora. Os golpes e ditaduras que infelicitaram o continente foram bancados pelos veículos de impressa. O neoliberalismo que dizimou a região também foi apoiado por este setor. Já os governos progressistas nascidos da luta contra as chagas neoliberais tiveram como principal opositor o “Partido da Imprensa Golpista (PIG)”. Nada mais natural, portanto, que a regulação se tornasse uma exigência democrática. Ley de Medios da Argentina Pelas regras agora em vigor, os grupos monopolistas tem um prazo definido para vender parte de seus ativos com o objetivo expresso de “evitar a concentração da mídia”. O Grupo Clarín, maior holding multimídia do país, terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200 outorgas de rádio e televisão, além dos edifícios e equipamentos onde estão as suas emissoras. A batalha pela constitucionalidade dos quatro artigos durou quatro anos e agitou a sociedade argentina. O Clarín – que fez fortuna durante a ditadura militar – agora não tem mais como apelar. Aprovada por ampla maioria no Congresso Nacional e sancionada por Cristina Kirchner em outubro de 2009, a nova lei substitui o decreto-lei da ditadura militar. Seu processo de elaboração envolveu vários setores da sociedade – academia, sindicatos, movimentos sociais e empresários. Após a primeira versão, ela recebeu mais de duzentas emendas parlamentares. No processo de debate que agitou a Argentina, milhares de pessoas saíram às ruas para exigir a sua aprovação. A passeata final em Buenos Aires contou com mais de 50 mil participantes. Mesmo assim, os barões da mídia tentaram sabotá-la, apostando suas fichas na Suprema Corte da Argentina. Isto explica porque a sentença de outubro abalou tanto os impérios midiáticos da região, reunidos na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). Num discurso terrorista, eles afirmaram que a nova lei é autoritária. Mas até o Relator Especial sobre Liberdade de Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), Frank La Rue, reconheceu que a Ley de Medios da Argentina – com seus 166 artigos – é uma das mais avançadas do planeta e visa garantir exatamente a verdadeira liberdade de expressão, que não se confunde com a liberdade dos monopólios midiáticos. Equador e Uruguai dão exemplo A Argentina não foi a única a avançar neste debate estratégico na região. Outros dois países deram passos significativos neste sentido em 2013. Em junho, o parlamento do Equador aprovou o projeto do governo de Rafael Correa que cria um órgão de regulação da mídia com poderes para sancionar econômica e administrativamente os veículos da imprensa e que definirá os critérios para as futuras concessões de rádio e televisão no país. O projeto tramitou por quatro anos na Assembleia Nacional e foi aprovado por folgada maioria – 108 a favor e 26 contra. Além de criar a Superintendência de Informação e Comunicação, que terá o papel de “vigilância, auditoria, intervenção e controle”, a lei reserva 33% das futuras frequências de rádio e TV para a mídia estatal, 33% para emissoras privadas e 34% para os grupos indígenas e comunitários. Ela também garante amplo direito de resposta, contrapondo-se ao chamado “linchamento midiático”. Caso julgue que pessoa física ou jurídica foi “caluniada e desacreditada” pela mídia, a Superintendência pode obrigar o veículo responsável a divulgar um ou mais pedidos de desculpas. Para o deputado Mauro Andino, relator do projeto, a nova lei com seus 119 artigos representa significativo avanço na democracia no Equador e na garantia da verdadeira liberdade de expressão. “Como cidadãos, queremos a liberdade de expressão com os limites dados pela Constituição e pelos instrumentos internacionais, além de uma liberdade de informação com responsabilidade... Propusemos uma lei que se constrói a partir de um enfoque de direitos para todos, não para um grupo de privilegiados”. Vale lembrar que a mídia equatoriana é controlada por banqueiros! Para irritar ainda mais os barões da mídia do continente, em dezembro último a Câmara dos Deputados do Uruguai aprovou a Lei dos Serviços de Comunicação Audiovisual, proposta pelo governo de José Pepe Mujica. Com 183 artigos, a nova “Ley de Meios” encara os meios de comunicação como um direito humano e define que “é dever do Estado assegurar o acesso universal aos mesmos, contribuindo desta forma com liberdade de informação, inclusão social, não-discriminação, promoção da diversidade cultural, educação e entretenimento”. Em seu enunciado, a nova lei enfatiza que os monopólios dos meios de comunicação “conspiram contra a democracia ao restringir a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito à informação”. Visando corrigir esta distorção, o texto propõe “plena transparência no processo de concessão de autorizações e licenças para exercer a titularidade” nas emissoras de rádio e televisão. Ela também prevê a criação de um Conselho de Comunicação Audiovisual, com o intento de “implementar, monitorar e fiscalizar o cumprimento das políticas”. A nova lei uruguaia ainda estabelece cotas mínimas de produção audiovisual nacional, institui o horário eleitoral gratuito nos canais e determina que as empresas telefônicas não poderão explorar concessões de rádio ou tevê. Ela também contempla a proteção à criança e ao adolescente, já que regula a veiculação de imagens com “violência excessiva”. Das 6h às 22h, esse tipo de conteúdo é proibido, com a exceção para “programas informativos, quando se tratar de situação de notório interesse público” e somente com aviso prévio explícito sobre a exposição dos menores. A reação da máfia midiática da SIP Na maior caradura, o presidente da SIP, Jaime Mantilla, disse que "os governos latino-americanos têm se dedicado a semear o ódio e o medo" contra os meios de comunicação. O objetivo da entidade, sediada em Miami, com famosos vínculos com a CIA e que sempre apoiou os golpes e as ditaduras, é evitar que as novas legislações sejam aplicadas em sua plenitude e que contagiem outros países da região. O Brasil inclusive foi citado como preocupação maior dos mafiosos da mídia do continente. Se depender da presidente Dilma Rousseff, porém, eles podem dormir tranquilamente. * Artigo publicado na revista Princípios número 129 - fevereiro e março de 2014.
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